ECONOMIA DIGITAL

Impactos da Inteligência Artificial no mundo do trabalho

Enquanto os países ricos dominam tecnologia, patentes, dados e lucros relacionados à IA, o Sul Global é território para extrativismo de matérias-primas e fornecimento de mão-de-obra mal paga e sem direitos. Leia artigo da professora da Universidade de São Paulo, Roseli Figaro.

11/03/2024 17:00 - Modificado há 13 dias
Getty Images
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A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE em suas recomendações sobre Inteligência Artificial (IA) assim a definiu: “conjunto de tecnologias que procuram fazer com que os computadores façam o tipo de coisas que as mentes podem fazer” (1). 

Para isso, um parque industrial foi montado. As características dessa nova cadeia de produção guardam muita similaridade aos padrões anteriores: necessita de minérios (ouro, cassiterita, lítio, cobalto – para mencionar alguns – cujas reservas estão em territórios do Sul Global, como nas terras Yanomami, por exemplo, de onde é extraída ilegalmente a cassiterita, ou o cobalto do Congo, ou o lítio da Argentina, da Bolívia e do Chile) e muita água para refrigerar os poderosos datacenters – as tais nuvens – que gastam água e ocupam extensas áreas territoriais. 

Dados são o insumo que faz toda essa cadeia se mover. Os dados fazem operar os algoritmos, dão dinâmica própria às reconfigurações das máquinas. Sem os dados o modelo de negócios que orienta esta cadeia produtiva não existiria. Daí todo clamor por conexão, interação, permanência nas redes sociais.

Também são necessários materiais para os cabos que cruzam os oceanos, conectando os continentes ou mesmo os satélites que orbitam o espaço congestionado onde já disputam, EUA e China, o lado escuro da Lua (2). Tudo isso é muito concreto, pesado, usa recursos naturais e polui.

Essa infraestrutura permite a existência da internet, dos celulares e de toda sorte de produtos eletrônicos, da denominada internet das coisas e da indústria 4.0. Ela é o fundamento para a existência das demais operações da cadeia produtiva que envolvem a Inteligência Artificial. 

Os dados são outra fonte fundamental.  São inesgotáveis, porque são produzidos pelas relações sociais. Dados são o insumo que faz toda essa cadeia se mover. Os dados fazem operar os algoritmos, dão dinâmica própria às reconfigurações das máquinas. Sem os dados o modelo de negócios que orienta esta cadeia produtiva não existiria. Daí todo clamor por conexão, interação, permanência nas redes sociais. Os denominados big datas são como minas de dados a serem tratados e organizados com finalidades específicas para todo tipo de negócio.

A IA se alimenta de dados, sem eles não há operação possível. Denominamos os dados humanos de “materialidades sensíveis”: voz, falas, gestos, corpos, olhos, cores, interações sociais e atividades de todo tipo que possam ser captadas, organizadas e comercializadas como produtos - seja para aperfeiçoamento algorítmico, seja para operar mercados de publicidade, jornalismo, educação, medicina e saúde, comércio, governo, segurança pessoal e nacional, até eleições. Tudo isso nós sabemos e há verdadeiras guerras por minérios, água, satélites e dados.

No entanto, permanece na invisibilidade aquilo que move toda essa estrutura: o trabalho. São mineiros, entregadores e motoristas por aplicativos, anotadores que marcam e rotulam dados, mediadores de chat, produtores de conteúdo e uma gama de atividades ainda não adequadamente nomeadas.

No entanto, permanece na invisibilidade aquilo que move toda essa estrutura: o trabalho. São mineiros, entregadores e motoristas por aplicativos, anotadores que marcam e rotulam dados, mediadores de chat, produtores de conteúdo e uma gama de atividades ainda não adequadamente nomeadas. Eles e elas fazem parte da grande massa da classe trabalhadora atual sem direitos, são invisíveis. A maioria trabalha por peça, modalidade de pagamento do final do século 19. São mais de dois milhões de trabalhadores no Brasil, segundo o IBGE (2023). 

O Brasil é um dos países com maior mercado de anotação de dados para IA do mundo.

Esse trabalho pode ser realizado tanto por plataformas como a Amazon Mechanical Turk ou por empresas locais terceirizadas - as chamadas BPOs (na sigla em inglês) ou Terceirização de Processos de Negócios. Há, ao menos, 50 plataformas de anotação de dados para IA no Brasil. Esses trabalhadores são a inteligência humana que abastece de informação e treina os algoritmos.

Há, portanto, uma cadeia de produção de infraestrutura e há uma cadeia de produção para a extração de dados – dessa cadeia de dados todos nós fazemos parte, sobretudo, aqueles que precisam trabalhar por meio de plataformas de aplicativos. Um entregador por aplicativo, por exemplo, não entrega apenas comida, entrega dados da cidade, dos consumidores, do comércio, do clima, do trânsito. Esses trabalhadores são como antenas que coletam dados gratuitamente para que o algoritmo da plataforma possa operar. 

Temos então um novo mundo do trabalho. Aquele chão de fábrica da esteira móvel e de posições fixas de trabalho que passou pela polivalência e a flexibilidade, hoje transformou-se com a explosão dessas duas ordens de organização do processo produtivo. Mesmo em indústrias tradicionais, o ritmo e as condições de trabalho passam a ser determinados pelos algoritmos que são muito menos complacentes que os antigos mestres, contramestres e supervisores, pois não têm nenhuma empatia. A concentração e o controle são brutais, a gestão algorítmica do trabalho simula a autonomia e a vontade própria. Daí a falsa sensação de liberdade e a total desregulamentação. 

A concentração e o controle são brutais, a gestão algorítmica do trabalho simula a autonomia e a vontade própria. Daí a falsa sensação de liberdade e a total desregulamentação.

As empresas globais de plataformas não se submetem às legislações locais. É evidente a intensificação da dependência dos países de América Latina e África. Elas dão de ombros aos direitos constitucionais e à soberania de dados ou soberania informacional. Essa é a verdadeira questão da fronteira das disputas geopolíticas. Mas, essa bandeira só pode prosperar a partir de esforços globais de regulação e controle desses modelos de negócios. 

Os organismos internacionais, como a ONU por exemplo, que criou uma comissão especial sobre a governança para IA, não tratou do tema do mundo do trabalho (3); e o relatório da OIT de 2023 não trouxe indicações concretas para tratar da questão (4). 

Há deliberada miopia sobre o eixo central do problema: enquanto as patentes, os dados e os lucros são hiper concentrados, com sede e endereço bem certo e físico, os países do Sul Global servem de território de extrativismo, força de trabalho mal paga, precária e sem direitos. Um espaço desregulado. 

O discurso persuasivo sobre o novo e o deslumbramento tecnológico nos impedem de ver claramente como operam essas cadeias de produção e que a única forma de as regular, é regulando o trabalho. As cadeias produtivas globais das tecnologias contemporâneas precisam de governança global, mas com participação e determinação dos países do Sul Global, os quais fornecem grande parte dos insumos fundamentais para a existência delas – recursos naturais, dados e trabalho humano vivo, muito vivo, mas muito mal tratado. Mas pode ser diferente! 

(1) OECD. Recommendation of the Council on Artificial Intelligence. 2019. https://www.oecd.org/digital/artificial-intelligence/ (Tradução própria)

(2) Revista Pesquisa Fapesp, fev. 2019. https://revistapesquisa.fapesp.br/china-pousa-sonda-no-lado-oculto-da-lua/

(3) ONU. Relatório provisório: Governando a IA para a Humanidade. 2024. https://www.un.org/en/ai-advisory-body#:~:text=Co%2Dchaired%20by%20Carme%20Artigas,in%20the%20summer%20of%202024.

(4)  ILO. Relatório OIT. 21 de Agosto de 2023 https://www.ilo.org/global/publications/working-papers/WCMS_890761/lang--en/index.htm

Roseli Figaro é Professora titular da Universidade de São Paulo e coordena o Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT)

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