OPINIÃO

"Brasil pode usar sua posição para ajudar no desafio da inclusão financeira mundial"

Cerca de um quinto de todos os adultos não têm conta bancária, apesar do progresso significativo nas últimas duas décadas. Não têm espaço seguro para guardar o seu dinheiro, o que torna quase impossível acumular riqueza ou escapar à pobreza. A boa notícia é que temos uma solução comprovada para este problema: a infraestrutura pública digital.

Artigo escrito por Mark Suzman e Amitabh Kant - Publicado pelo jornal Indian Express

02/01/2024 09:00 - Modificado há um mês

Em 2024, o Brasil tem a chance de deixar uma marca no mundo. No mês passado, a Índia entregou a presidência do G20 ao Brasil. É a primeira vez que o Brasil lidera o G20, um grupo de líderes das maiores economias do mundo que resolvem problemas por meio da cooperação econômica. A questão é: o que o Brasil pode fazer com esta nova posição de influência global?

Uma resposta óbvia: ajudar a resolver o desafio mundial de inclusão financeira. Cerca de um quinto de todos os adultos não têm conta bancária, apesar do progresso significativo nas últimas duas décadas. Não têm espaço seguro para guardar o seu dinheiro, o que torna quase impossível acumular riqueza ou escapar à pobreza. A boa notícia é que temos uma solução comprovada para este problema: a infraestrutura pública digital (Digital public infrastructure/DPI).

Há 12 anos, a Índia abrigava mais pessoas sem conta bancária do que qualquer outro país. De acordo com o Banco de Compensações Internacionais (Bank for International Settlements/BIS), não estava previsto que o país alcançasse uma “taxa de inclusão financeira” de 80% até 2064. Mas as coisas avançaram mais rapidamente do que o esperado – quase 50 anos depois. Em 2021, 78% dos indianos tinham contas bancárias e não existiam disparidades de gênero no acesso.

"Cerca de um quinto de todos os adultos não têm conta bancária, apesar do progresso significativo nas últimas duas décadas. Não têm espaço seguro para guardar o seu dinheiro, o que torna quase impossível acumular riqueza ou escapar à pobreza. A boa notícia é que temos uma solução comprovada para este problema: a infraestrutura pública digital."

Como é que a Índia conseguiu acumular meio século de progresso em menos de uma década? O governo construiu uma combinação de sistemas capazes de autenticar a identidade das pessoas e permitir que governos, empresas e indivíduos enviassem e recebessem dinheiro de forma instantânea, independentemente de quem abriga as contas subjacentes. Este é o conhecido “India Stack”, apenas um dos grandes exemplos de DPI em construção em todo o mundo para fazer de tudo – desde enviar pagamentos de auxílio aos cidadãos até facilitar visitas de telessaúde e fornecer aos agricultores dados meteorológicos e orientações de plantio em tempo real.

O Brasil também expandiu rapidamente a inclusão financeira por meio da DPI. Em 2020, o Banco Central do Brasil lançou o PIX, um sistema de pagamento instantâneo que é hoje um dos que mais cresce no mundo. O Banco Central lançou então um regime de financiamento aberto que permite aos usuários compartilharem os seus dados bancários com uma série de fornecedores de crédito, seguros e poupanças. Hoje, 84% dos adultos no Brasil têm uma conta financeira, contra 56% em 2011. Cerca de 80% dos adultos usam ativamente as suas contas – taxa que está entre as mais altas do mundo.

Esses investimentos estimulam o crescimento. Para nações com taxas de inclusão financeira particularmente baixas, os investimentos na DPI podem aumentar o PIB em 12%. A DPI fica entre a infraestrutura física de telecomunicações, como torres de celular, e serviços e ferramentas digitais, como os aplicativos nos telefones das pessoas. Pense nisso como estradas digitais. Sem a construção de autoestradas pelos governos, as empresas não poderão fornecer produtos e serviços aos clientes. Depois que um governo cria os mecanismos para o “transporte” digital, uma empresa ou agência governamental pode usar a plataforma para identificar clientes em potencial, solicitar consentimento para acessar seus dados para a personalização de produtos e realizar transações com eles sem ter que negociar com um fornecedor incumbente por pagamentos ou troca de dados.

É claro que estas estradas digitais necessitam do equivalente a sinais de trânsito e barreiras de segurança, incluindo salvaguardas regulamentares e sistemas para garantir a privacidade de dados e prevenir ataques cibernéticos. Eles também precisam ser construídos de forma eficiente.

Os países não precisam de uma “pilha” (ou stack) de ponta a ponta para cada setor. O Ministério da Educação não constrói uma estrada para os ônibus escolares enquanto o Ministério da Saúde constrói outra para as ambulâncias. As estradas, assim como os fios elétricos e os cabos de fibra óptica, destinam-se a transportar todo tipo de tráfego. Esse não é o caso no mundo digital. Cada vez mais, as agências constroem os seus próprios sistemas de identificação, pagamentos e compartilhamento de dados, o que muitas vezes é redundante e desperdiça recursos preciosos. Este é apenas um dos desafios da construção da DPI e o G20 é indispensável para o resolvê-lo

Quando os líderes do G20 se reuniram em Nova Delhi, em setembro, produziram a Declaração de Líderes do G20 de Nova Delhi, que refletiu os enormes progressos alcançados – desde a segurança de dados pessoais à garantia de que os sistemas através dos quais as pessoas depositam e enviam dinheiro possam ser interligados ou interoperacionais. A Índia também realizou um trabalho importante, colocando as necessidades das mulheres e das pessoas do Sul Global no centro da discussão da DPI.

O Brasil estabeleceu que a DPI é uma prioridade para o G20 ao incluí-lo em seu Grupo de Trabalho sobre Economia Digital. O G20 poderá desenvolver este trabalho de três formas importantes.

Em primeiro lugar, orientação. Precisamos desenvolver claros princípios internacionais de design de DPI para garantir que esses sistemas sejam inclusivos, interoperáveis e seguros contra ataques cibernéticos e violações de privacidade. O G20 é capaz de reunir uma vasta gama de partes interessadas para fazê-lo, incluindo as Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.

Em segundo lugar, o compartilhamento de tecnologia. Apenas alguns países construíram bem a sua DPI – e precisamos que eles continuem a compartilhar os seus conhecimentos com aqueles que ainda não ergueram a sua infraestrutura digital. Uma maneira de fazer isso é contribuir para as bibliotecas de código-fonte aberto que abrigam os blocos de construção da DPI – como o MOSIP, o Mojaloop e o Repositório Global de DPI (Global DPI Repository), lançado durante a presidência indiana do G20.

Finalmente, precisamos de mais financiamento. O G20 deve concentrar-se num objetivo definido pela recente campanha “50 em 5” e ajudar mais 50 países de baixa e média renda a construírem uma DPI de alta qualidade ao longo dos próximos cinco anos. Há uma série de iniciativas para ajudar a fornecer este financiamento. A Fundação Gates apelou por um investimento adicional de 500 milhões de dólares em todo o mundo, ao passo que o Fundo de Impacto Social (Social Impact Fund) da Índia e organizações como a Co-Develop se propuseram a angariar dinheiro.

À medida que o Brasil assume a presidência, esperamos que os líderes estabeleçam as bases para a inovação digital que levará a um mundo mais saudável e próspero. Se o G20 mantiver o dinamismo que a Índia iniciou em 2024, o mundo inteiro poderá conseguir acumular décadas de progresso em poucos anos.

Kant é o Sherpa do G20 da Índia. Anteriormente, atuou como CEO da NITI Aayog.

Suzman é CEO da Fundação Bill & Melinda Gates