DIÁLOGOS G20

O Guardião da Terra: Nobel da Paz defende que agricultura seja usada como solução para mudanças climáticas

O indiano Rattan Lal, Prêmio Nobel da Paz em 2007, falou com exclusividade para o G20 Brasil quando participou da reunião de Pesquisadores Agrícolas de países-membros do G20, onde defendeu que “a ciência deve ser promotora da paz”.

07/06/2024 07:00 - Modificado há 2 meses
O cientista do solo e Prêmio Nobel da Paz, Rattan Lal, durante entrevista exclusiva para o G20 Brasil. Crédito: Audiovisual G20

O cientista do solo Rattan Lal se apresenta como cidadão indiano. É um homem alto e simpático, com  vigor físico que surpreende, aos seus 79 anos de idade. Foi laureado com o Prêmio Nobel da Paz em 2007 em função da sua pesquisa e atuação na saúde do solo e ativismo por uma agricultura racional, que produz melhor por respeitar a natureza. 

A simples presença de Lal em um ambiente transmite tranquilidade, apesar da força das suas palavras e propostas. Tem a contundência de quem defende o óbvio, “a agricultura não tem que ser neutra em emissão de carbono, mas negativa” ou “produtores precisam ser remunerados por adotarem boas práticas”.

Nascido na Índia Britânica, hoje parte do Paquistão, precisou migrar ainda criança para a Índia, quando os países se separaram em 1947. No lugar mais populoso do mundo, sua família trabalhou em um terreno árido, que precisou de criatividade para torná-lo produtivo. Em recente visita ao Brasil para participar da reunião do G20, defendeu que o grupo pode ter um papel importante na criação da “Lei do Solo” e mudar a forma como encaramos a produção de alimentos. 

Lal mostra, com evidências levantadas ao longo dos anos, o caminho para o desenvolvimento sustentável e uma economia baseada na captura de carbono, que devem orientar o futuro da produção mundial. Sua pesquisa comprova que a qualidade da água e do ar estão diretamente ligadas à saúde da terra, e que a melhor maneira de reverter o efeito estufa é através da gestão humana sobre os três elementos. 

Em um momento em que a humanidade discute se o Antropoceno já começou e todos os continentes sofrem com anomalias climáticas, ele mostra que a ciência já tem a solução para equilibrar a produção agrícola, a conservação ambiental e evitar um colapso global. Enfatiza a necessidade de práticas que protegem e restauram os recursos naturais, destacando a urgência de políticas pró-natureza e pró-agricultor, para enfrentar desafios como a degradação do solo e a segurança alimentar. 

Em maio deste ano, o Nobel da Paz concedeu a seguinte entrevista exclusiva para o G20, discutindo práticas sustentáveis, a importância da cooperação internacional, do Sul Global e de políticas públicas no setor. 

Como o mundo pode equilibrar a necessidade de expandir a produção agrícola com a conservação ambiental?

O Brasil fez um excelente trabalho em promover a agricultura, aumentou a produtividade nos últimos 50 anos, semelhante a outros lugares que experimentaram a Revolução Verde, como o Sul da Ásia.  Há algumas consequências negativas desse desenvolvimento. Emissões de gases de efeito estufa, degradação do solo, desequilíbrio hídrico, seca e inundações como a que estamos assistindo agora no Sul do Brasil.

O objetivo de melhorar a gestão das práticas agrícolas nem sempre é a maior produtividade. A produtividade ideal inclui a restauração e a melhoria dos recursos da terra e da água. Demos muita ênfase à produção, agora devemos buscar soluções agrícolas. Mesmo que signifique perda de produtividade, 5% ou 10%, deve ser aceitável. Atualmente, o mundo produz mais de 3 bilhões de toneladas de grãos e 1 bilhão de toneladas não chegam a nenhum estômago, humano ou animal, é desperdiçado, consumindo muitos recursos.

Demos muita ênfase à produção, agora devemos buscar soluções agrícolas. Mesmo que signifique perda de produtividade, 5% ou 10%, deve ser aceitável. Atualmente, o mundo produz mais de 3 bilhões de toneladas de grãos e 1 bilhão de toneladas não chegam a nenhum estômago, humano ou animal, é desperdiçado, consumindo muitos recursos.

Por que produzir mais e desperdiçar mais? Otimizar a produtividade, produzir mais com menos, proteger o solo, a água e a capacidade de sequestro de carbono é a melhor opção. A Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e outras instituições como a IICA (Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura), fizeram uma excelente pesquisa para alcançar isso. Ampliar, adotar e desenvolver políticas que sejam pró-natureza, pró-agricultor e pró-agricultura ajudará a resolver esses problemas.

Experimentamos o aumento da monocultura nos últimos anos, que tem um custo ecológico considerável?

Certamente, o mundo tem 30% a 35% das emissões globais de gases de efeito estufa provenientes dos sistemas de produção de alimentos. Metade disso vem da produção agrícola. Temos um sério problema de erosão do solo pela água e pelo vento, levando a inundações e secas, que infelizmente são evidentes no estado brasileiro do Rio Grande do Sul. Temos também sérios problemas de perda de biodiversidade.

Já existem tecnologias agrícolas, como a agricultura de conservação, o retorno de resíduos das culturas à terra, a melhoria da eficiência do uso de fertilizantes e a integração de culturas com árvores e gado. O caminho não é pela monocultura, é por sistemas agroflorestais e silvipastoris. A questão é: se promovermos a agricultura de carbono, quanto dinheiro os agricultores devem receber para que aceitem reduzir a produtividade? A captura de carbono deve ser como uma mercadoria. 

Nenhum agricultor no mundo fará uma agricultura melhor a 1 dólares por crédito, enquanto o preço real deveria ser 50 dólares. Enquanto o mercado se desenvolve, não devemos sub-remunerar ou desvalorizar este recurso precioso. A meta de zero pobreza e fome pode ser alcançada pela agricultura de carbono, se o preço pago corresponder ao valor social do carbono, não necessariamente ao valor de mercado.

Precisamos pagar aos agricultores pequenos, médios e grandes 50 dólares por crédito (um crédito equivale a uma tonelada cúbica de CO₂). Se ele sequestrar dois créditos de carbono no solo, ele deve receber 100  dólares por hectare como um serviço ecossistêmico. É aí que discordo sobre o mercado de carbono, que ainda não se desenvolveu. A Chicago Climate Exchange começou a 1 dólares por crédito em 2000, chegou a 6 em 2006, e porque não havia demanda por sequestro de carbono na terra, o mercado colapsou para 0,20 centavos de dólares e ainda está abaixo de $1.

Nenhum agricultor no mundo fará uma agricultura melhor a 1 dólares por crédito, enquanto o preço real deveria ser 50 dólares. Enquanto o mercado se desenvolve, não devemos sub-remunerar ou desvalorizar este recurso precioso. A meta de zero pobreza e fome pode ser alcançada pela agricultura de carbono, se o preço pago corresponder ao valor social do carbono, não necessariamente ao valor de mercado. Não devemos nos concentrar demais em medição, monitoramento e verificação. São ações necessárias, mas as imagens de satélite já estão disponíveis em todo o planeta, o que é uma ótima opção.

Como sua pesquisa sobre saúde do solo se relaciona com o conhecimento e as práticas das comunidades tradicionais?

Na Região Amazônica e em muitas outras partes do mundo, como África Central, Sul da Ásia e Sudeste Asiático, as comunidades tradicionais sabiam como ter uma agricultura simbiótica com a natureza. O problema tem sido o crescimento populacional. Somos 8,2 bilhões de pessoas e devemos ser 9,8 bilhões até 2050. Como alimentar tanta gente? A produtividade tem aumentado, mas enquanto os métodos nativos são muito bons e pró-natureza, sua produtividade agrícola é insuficiente.

Podemos encontrar um meio-termo onde temos uma produção ótima, que protege e restaura a natureza. A agroecologia tem quatro princípios: tudo está conectado a tudo, não há como jogar nada fora, a mãe natureza sabe o que é melhor e não há almoço grátis. Tudo tem um preço, a intensificação agrícola tem um preço. Promovo a eco-intensificação agrícola para que esses princípios ecológicos não sejam comprometidos. Ao fazer isso, podemos ter uma boa produção enquanto protegemos e restauramos o solo e a natureza.

A política desempenha um papel importante no apoio às práticas agrícolas sustentáveis. O que precisa ser feito nessa área?

Nos EUA, temos a Lei do Ar Limpo (Clean Air Act) de 1967 e a Lei da Água Limpa (Clean Water Act) de 1972. Agora precisamos de uma nova lei. Não podemos ter ar e água limpos se não tivermos um solo saudável. Devemos ter agora uma Lei do Solo Saudável (Healthy Soil Act). O objetivo deve ser que, se os agricultores gerirem a terra corretamente, mantendo sempre coberta, minimizando a erosão e maximizando a entrada de carbono no solo, não precisaremos de agricultura zero carbono. 

A agricultura é a única indústria que tem que ser negativa em carbono, não zero ou neutra, negativa!  Estou falando da agricultura ser significativamente negativa. Por exemplo, se você investir uma tonelada de carbono por hectare, a agricultura pode produzir dez toneladas de carbono por hectare. Isso é negativo. Devemos ter políticas que promovam a agricultura como um setor de emissões negativas.

A agricultura é a única indústria que tem que ser negativa em carbono, não zero ou neutra, negativa!  Estou falando da agricultura ser significativamente negativa. Por exemplo, se você investir uma tonelada de carbono por hectare, a agricultura pode produzir dez toneladas de carbono por hectare. Isso é negativo. Devemos ter políticas que promovam a agricultura como um setor de emissões negativas.

Um Healthy Soil Act no Brasil ou em outros países do G20 seria um bom exemplo a se seguir em todo o mundo. A agroindústria pode desempenhar um papel crucial, especialmente na África, Sul da Ásia, Caribe e na Índia, onde estão os pequenos proprietários de terra. Precisamos tornar a tecnologia acessível aos pequenos agricultores. Precisamos de 100 bilhões de dólares por ano para fazer da agricultura uma solução.

Podemos resolver este problema juntos se estivermos dispostos a algum sacrifício e a respeitar a natureza. Nesse sentido, o setor privado deve ser um forte participante. Comunidades científicas devem trabalhar e colaborar para incentivar o investimento do setor privado em solo, terra e soluções agrícolas.

Como o G20 pode melhorar as políticas e visões sobre agricultura?

O cientista indiano com parte da equipe de comunicação do G20. Crédito: Audiovisual G20
O cientista indiano com parte da equipe de comunicação do G20. Crédito: Audiovisual G20

Se o G20 recomendar um Global Soil Health Act em todos os níveis - regional, nacional e global - com o objetivo de promover uma agricultura melhor e recompensar os agricultores por práticas ambientalmente benéficas, seria uma excelente ideia.

Temos sorte por ter a IICA, o Instituto Interamericano de secretários agrícolas, com todos os 34 países das Américas como membros. A IICA pode ajudar a promover um Healthy Soil Act. Estão estendendo seu programa Living Soils of America para o programa Living Soils of Africa. Com a cooperação entre a IICA, de países e universidades, a cooperação Sul-Sul poderia ser muito recompensadora globalmente.

A agricultura fez grandes avanços na melhoria da produção. O Brasil aumentou significativamente a produção, mas o meio ambiente sofreu. A questão é como fazer da agricultura uma solução para as questões de mudanças climáticas, qualidade da água e renovação. Estamos usando 200 milhões de toneladas de fertilizantes no mundo, com a África usando menos e a China e a Índia usando mais.

Como podemos reduzir o uso total de fertilizantes de 200 milhões de toneladas para 50 milhões de toneladas até o final do século? Melhorando a eficiência dos fertilizantes. Temos ainda muito desperdício e poluição, causando emissões de gases de efeito estufa.

A cooperação entre formuladores de políticas, países, setor privado e comunidade agrícola é crucial. Os problemas tem solução, se tivermos força de vontade.

Como a ciência do solo pode ajudar a recuperar lugares afetados por inundações?

O solo nunca deve ser deixado desprotegido e deve sempre ter cobertura. Quando a chuva cai em solo descoberto, ele se compacta, sua estrutura é destruída e sua capacidade de absorver e reter água é reduzida. As inundações resultam do uso indevido da terra, da má gestão do solo e das mudanças climáticas, causando eventos extremos de chuva. Se mantivermos o solo sempre coberto e cultivarmos uma cobertura durante a entressafra, a excelente pesquisa do Brasil sobre isso pode ajudar.

O solo deve ser uma solução para problemas de inundação e seca. Um exemplo do Sul da Ásia, o desmatamento do Himalaia, do Afeganistão ao Camboja, causa inundações em alguns meses e secas severas em outros. A solução é que todos esses países trabalhem juntos para reflorestar as regiões baixas do Himalaia. Da mesma forma, no Brasil, qualquer encosta inadequada para cultivo deve ter cobertura permanente. Terras agrícolas com inclinações abaixo de 5% ou 7% devem usar agricultura de conservação com cinco pilares: sem perturbação ou aragem, retorno de resíduos de culturas como cobertura, cultivo de cobertura na entressafra para mais biomassa, integração de culturas com árvores e gado, ter políticas que sejam pró-agricultor, pró-natureza e pró-agricultura. A gestão da estrutura do solo pode evitar melhor as síndromes de seca e inundação. A ciência já sabe, a aplicação e promoção precisam ser desenvolvidos.

O senhor nasceu no território que hoje pertence ao Paquistão, que em 2022 teve inundações severas. Quais mudanças de políticas eles fizeram na agricultura?

Eu nasci na Índia Britânica, agora Paquistão e, em 1947, quando ocorreu a partição, minha família se mudou para a Índia. Eu cresci na Índia e sou cidadão indiano, mas minha família é do Paquistão.

O problema da desnudação nos Himalaias inferiores é a causa principal das inundações. Escrevi um artigo dizendo que, como os Himalaias cobrem Afeganistão, Paquistão, Índia, Nepal e partes do Camboja e outros países do Sul da Ásia, esses países devem trabalhar juntos para o reflorestamento. Esse tipo de abordagem de longo prazo requer confiança e cooperação. 

Até agora, as políticas para enfrentar as inundações ou a agricultura não mudaram significativamente. Uma nova temporada de monções está se aproximando, e até agora, nada mudou no Paquistão ou na Índia em termos de políticas agrícolas.

Normalmente quem mais sofre são os pequenos agricultores, o que pode ser feito para apoiá-los?

No Sudeste Asiático, África e partes da América Latina e do Caribe, a maioria dos agricultores são mulheres. Na África, 60-70% dos pequenos agricultores são mulheres. Disponibilizar recursos para as mulheres agricultoras, oferecer educação, condições e permitir que elas controlem seu próprio destino é fundamental.

É essencial que as mulheres agricultoras tenham acesso à posse das terras, facilidades de crédito e à maior parte dos lucros da agricultura de carbono. Quando insistimos em medição, monitoramento e verificação, intermediários recebem a maior parte do dinheiro, não quem merece que são os agricultores. O processo deve ser simplificado: monitoramento remoto, imagens de satélite e métodos baseados no uso da terra devem ser usados, com verificação ocasional em campo. 95% do dinheiro deve ir para os agricultores, e não mais que 5% para os intermediários.

Você acredita que podemos alcançar isso?

Eu acho que sim. Sou muito otimista. Nos anos 1960, a Índia era um caso perdido, dependente dos Estados Unidos para se alimentar. Então veio Lester Brown perguntando quem alimentaria a China. Agora, as pessoas perguntam quem vai alimentar a África? É claro que os africanos vão alimentar a África. Vamos apoiá-los. Ajudar a traduzir os avanços científicos em prática. No G20, vamos tentar garantir que os formuladores de políticas entendam que devem fazer políticas que sejam pró-natureza, pró-agricultura e pró-agricultor.

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