Arquivos comunitários: estratégia brasileira de salvaguarda da memória contra as desigualdades
Acordo de cooperação entre o Arquivo Nacional e o PNUD vai fortalecer política arquivística do país e impulsionar o trabalho de arquivos comunitários de grupos em vulnerabilidade socioeconômica no país. Política busca que comunidades negras, indígenas, rurais, faveladas e LGBTQIAP+ tenham acesso ao direito à memória e condições de registrar suas vivências individuais e coletivas. Cooperação internacional para o enfrentamento às desigualdades é uma das prioridades da presidência brasileira do G20
“Os arquivos comunitários têm furado a bolha da exclusão, a partir da composição e difusão de acervos que remetem ao que foi vivido por pessoas e grupos que também são subrepresentados em outras dimensões da cidadania”, explica a diretora do Arquivo Nacional, Ana Flávia Magalhães Pinto. A historiadora celebra a iniciativa inédita do Brasil de buscar na cooperação internacional possibilidades para fortalecer a política arquivística e garantir que comunidades negras, indígenas, rurais, faveladas e LGBTQIAP+ tenham acesso ao direito à memória e condições de registrar suas vivências individuais e coletivas na sociedade.
De acordo com Ana Flávia, a superação das desigualdades está relacionada ao impacto da participação efetiva das pessoas que são afetadas por injustiças na construção de soluções para os problemas enfrentados nas sociedades democráticas. Ela indica que parte da população brasileira tem dificuldade de atuar como sujeito de direito, pois a matriz de memória as excluiu. “A garantia do direito à memória para pessoas negras, indígenas, pobres, mulheres, LGBTQIAP+, por exemplo, é um caminho para compreender melhor como a manutenção desses privilégios têm dependido da exploração e da subalternização das maiorias populacionais e encontre saídas para isso”, pontuou.
A presidenta da Associação Latino-Americana de Arquivos (ALA), Emma de Ramón Acevedo, indicou que todos os países da América Latina possuem arquivos comunitários como o Archivo de la Memoria Trans, na Argentina; Londres 38, no Chile; Sopocachi e El Archivo Comunitario de El Alto, na Bolívia. A experiência é comum a vários países do mundo.
“O fortalecimento dos arquivos comunitários é um tema realmente muito importante porque têm sentido no que diz respeito à população, à cidade, às comunidades e aos territórios, que se interessam pelo tema de arquivos e começam a participar da construção de seus próprios arquivos. Gera a memória, a auto memória de um grupo de pessoas, de uma comunidade, de uma organização e das diferentes formas que os grupos sociais organizados assumem, defende Emma.
A vez dos arquivos comunitários
Asfilófio de Oliveira Filho, conhecido como Dom Filó, é um ativista histórico do Movimento Negro Brasileiro e pioneiro no registro da história desta população no Brasil, que soma 56% da população de acordo com dados oficiais. É responsável pelo Cultne, maior acervo virtual de cultura afro da América Latina e propõe que as iniciativas de salvaguarda da memória de pessoas negras sejam fortalecidas para ampliar políticas de ações afirmativas pela igualdade de oportunidades na sociedade. “Faz-se necessário uma reparação histórica não se limitando apenas a compensações financeiras, mas também transformações estruturais”, negritou.
O Museu da Maré, no Rio de Janeiro, além de ações de registro, preservação e divulgação da história de moradores das favelas que compõem o Complexo da Maré, promove ações de cidadania no combate às desigualdades e violações de direitos. Thamires de Oliveira, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e colaboradora do Museu, destaca que iniciativas comunitárias de salvaguarda das memórias de pessoas que possuem um histórico de luta e resistência é fundamental “para a superação dos estigmas construídos historicamente que limitam na prática a vivência da cidadania nesses territórios, contribuindo diretamente para um patrimônio nacional mais plural e democrático”.
“A memória das periferias também faz parte da história do Brasil”, lembrou José Eduardo Ferreira Santos do Acervo da Laje, em Salvador, capital da Bahia. O centro de documentação lida com a preservação da memória de mais de 20 bairros localizados no Subúrbio Ferroviário da cidade, retratando outras narrativas sobre o território periférico. “Chegamos muitas vezes onde o Estado não consegue chegar, no dia a dia dessas populações. Tem a ver também com a formação de novas gerações que vão estar mais fortalecidas, pois tiveram acesso ao trabalho de promoção da memória e acionamento de capitais simbólicos e culturais que estão disponíveis nas comunidades”, explicou Santos.
Constituído no início dos anos 2010, o Acervo Bajubá é um projeto comunitário de registo de memórias das comunidades LGBTQIAP+ brasileiras. De acordo com Marcos Tolentino, educador e pesquisador; e Natan, artista, pesquisadora e educadora, além da salvaguarda da memória o Acervo ambém é uma forma de fomentar o combate à discriminação, aos preconceitos e aos estigmas que ainda marcam o desenvolvimento subjetivo das pessoas.
“Acervos comunitários como Bajubá são espaços de formação e de possibilidades de empregabilidade para pessoas que por diversos motivos ainda encontram dificuldades de se inserir no mercado formal de trabalho. O apoio a tais iniciativas garantem não só a sustentabilidade dos acervos comunitários, mas também o reconhecimento do trabalho profissional desenvolvido nestes espaços”, contaram.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) mantém um arquivo popular, que preserva registros para a formação, a identidade, a mobilização e a ação política dos membros do coletivo. Desde 2014, existe uma equipe que trabalha na salvaguarda dos documentos do movimento, que ainda não estão abertos para o público.
“O arquivo do MST tem a função de fortalecer a identidade, formar e capacitar, além de estabelecer uma relação com dados e informações. É fundamental o estado brasileiro apoiar a criação e conservação dos arquivos comunitários, como também legitimar esses arquivos frente ao poder público, porque isso trás uma segurança de preservação e difusão para esses acervos que são tão importantes para entender outras perspectivas da história do país”, explica Lucimeire Barreto Rocha, historiadora e militante do Movimento.
Cooperação e combate às desigualdades
O Arquivo Nacional, órgão do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI), celebrou um acordo de cooperação com o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) para o fortalecimento da Política Nacional de Arquivos e do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq). A parceria pretende estimular o acesso ao conhecimento e à informação em segmentos sociais vulnerabilizados e distanciados dos direitos relacionados às agendas de preservação da memória, por meio da melhoria de processos de participação social nas decisões do Estado sobre a política arquivística e fortalecimento dos arquivos comunitários.
A presidência Brasileira do G20 tem como estratégia promover ações de cooperação entre países e organismos e instituições financeiras multilaterais para realizar as prioridades de combater a desigualdades, à fome e a pobreza, promover uma transição justa e reformar a governança global. O Grupo de Trabalho de Cultura tem como prioridades discutir ações de salvaguarda e proteção dos patrimônios dos países do fórum.