Infraestrutura digital é essencial para operar a sociedade, o governo e a economia no século 21, defende professor da University College London
O professor canadense David Eaves esteve no Brasil para uma reunião da “Troika” entre representantes do governo e da sociedade civil do Brasil, Índia e África do Sul. Ele concedeu uma entrevista exclusiva para o site G20 Brasil e falou sobre o conceito de Infraestrutura Pública Digital e o papel do Estado e dos bancos centrais. A reunião da Parceria Global para a Inclusão Financeira que discute os temas da entrevista aconteceu esta semana no Rio de Janeiro.
Hoje em dia muita gente não carrega dinheiro na carteira. Então, se os pagamentos digitais são essenciais para administrar uma economia do século 21, como torná-los de fácil acesso e o mais justo, inclusivo e seguro possível? Essa é uma pergunta que deve importar para os governos ao redor do mundo, na visão do professor canadense David Eaves. Ele leciona sobre Governo Digital e é Co-Diretor Adjunto do Instituto de Inovação e Propósito Público na University College London.
David esteve no Brasil participando de uma reunião da “Troika” entre representantes do governo e da sociedade civil do Brasil, Índia e África do Sul - países responsáveis pela presidência atual do G20, passada e a próxima presidência respectivamente.
Os cursos de David se concentram na governança da infraestrutura pública digital e no conhecimento mínimo viável que os administradores públicos precisam ter sobre tecnologia para serem eficazes em uma era digital. Ele é cofundador do Teaching Public Service in a Digital Age, que busca aumentar o número de funcionários públicos que recebem habilidades de administração pública da era digital.
O professor concedeu uma entrevista exclusiva para o site do G20 na qual abordou o conceito de Infraestrutura Pública Digital, as mudanças na economia do século 21 e o papel do Estado e dos bancos centrais na regulação e oferta de serviços financeiros aos cidadãos.
Confira a entrevista.
1) Você poderia explicar para o público em geral o que é Infraestrutura Pública Digital e a relação com a inclusão financeira dos cidadãos?
É um novo termo para descrever capacidades que a sociedade precisa ter há algum tempo como identidade digital, sistemas de pagamento e troca de dados e a razão pela qual elas são tão importantes para a inclusão financeira é porque você não pode abrir uma conta bancária a menos que possa provar quem você é. E, para muitas transações na sociedade, é muito mais fácil se você puder pagar usando seu telefone em vez de carregar dinheiro. Então, esses sistemas de tecnologia agora são como uma infraestrutura básica que você precisa ter para participar da sociedade, para obter uma conta bancária, para fazer transações. E então, se você quer atrair pessoas para a economia e quer dar a elas a liberdade de ganhar, receber e enviar dinheiro, inscrever-se em novos serviços, então você precisa ter uma infraestrutura digital que permita isso. Eu realmente penso nessa infraestrutura como os elementos necessários para ser um cidadão eficaz, tanto para receber serviços governamentais como para participar da economia.
2) Ano passado a presidência indiana do G20 realizou um trabalho importante de colocar as necessidades das mulheres e das pessoas do Sul Global no centro da discussão da Infraestrutura Pública Digital. Você acredita que a presidência brasileira do G20 tem conseguido avançar nessa discussão?
Eu acho que um dos pontos fortes do Brasil é que aqui há uma forte tradição de consulta pública e engajamento público quando se trata da criação de serviços. É algo que eu não tenho certeza se todo mundo faz (em outros países). Quando eu olho para um serviço como o Pix, com o crescimento do zero a 140 milhões de usuários em dois anos é uma história incrível. E faz com que as pessoas não precisem carregar dinheiro com elas, as faz se sentir um pouco mais seguras e protegidas, e sabemos que segurança é uma questão no Brasil.
E eu acho que provavelmente há mais a ser feito, mas tem sido uma maneira pela qual o Governo pôde obter benefícios para as pessoas de forma direta e rápida. Então, eu acho que o Brasil pode assumir uma posição de liderança e pode usar essa experiência para atingir certos grupos. E isso pode incluir não apenas mulheres, mas também outros grupos marginalizados.
3) De fato, o Pix foi apontado na última reunião da Parceria Global para a Inclusão Financeira como uma boa prática a ser compartilhada ao redor do mundo.
Acho que há muitas oportunidades aqui para inspirar outros governos a pensar em como devem replicar em seus países. E o próprio Pix foi influenciado por outros também. A equipe do Banco Central (BC) estudou a Unified Payment Interface (UPI) na Índia e outros sistemas ao redor do mundo e escolheram o que acharam mais útil e adicionaram “o sabor brasileiro” para construir o seu modelo.
Acho que há muita empolgação sobre a possibilidade de outros governos poderem usar o Pix e eu adoraria ver talvez até mesmo a equipe do BC compartilhar o código do sistema com outros países para que eles possam adotá-lo mais facilmente. Mas acho que também temos que ter muito cuidado para não simplesmente presumir que você pode levantar um sistema assim e levá-lo para outro país, e ele simplesmente funcionará magicamente.
Há políticas e decisões que o Banco Central escolheu e o governo brasileiro que ajudaram a impulsionar a adoção. Por exemplo, há um sistema semelhante no México que teve muito pouca aceitação, este é um ótimo exemplo de que você pode fazer um trabalho semelhante em dois países e acabar com resultados muito diferentes.
O fato de o Banco Central obrigar os bancos a usar o Pix também força a adoção. O fato de o governo nacional distribuir alguns dos benefícios por meio dele também impulsiona a adoção e a conscientização das pessoas e elas começam a usá-lo. Então, há todas essas coisas não tecnológicas acontecendo que estão ajudando a tornar as escolhas bem-sucedidas. Por isso temos que pensar não apenas sobre o sistema, mas também entender o contexto dos cidadãos, suas necessidades, e ver todas as políticas e outros fatores que estão acontecendo naquela sociedade que estão fazendo sucesso.
Outra coisa que também é verdade, na minha observação, é que o Banco Central no Brasil é bastante respeitado, ele atrai servidores públicos de alta qualidade, é percebido como bastante independente, é visto como confiável. Esses são benefícios que nem todos os bancos centrais ao redor do mundo têm. Então, se você apenas pegar escolhas e colocá-las em outro país onde talvez o banco não seja tão independente ou não seja tão confiável, isso terá o mesmo impacto?
4) Comente um pouco mais sobre esse papel dos bancos centrais para a inclusão financeira dos cidadãos?
Acho que essa questão sobre qual é o papel de um banco central na inclusão financeira é realmente importante. Porque, você sabe, uma das razões pelas quais o Pix foi criado foi, pelo menos no meu entendimento, que o Banco Central queria que os bancos criassem seus próprios sistemas para fazer pagamentos e eles esperaram e esperaram e os bancos nunca fizeram isso. E então, finalmente, o BC interveio e disse: vamos fazer isso. Porque viu como seria uma importante peça de infraestrutura necessária para permitir atrair as pessoas para a economia formal, para libertá-las de ter que usar dinheiro, para criar novas oportunidades para os negócios. E, se os bancos não iriam fazer isso, então eles iriam fazer eles mesmos. E isso sugere que os bancos são parceiros importantes na promoção da inclusão financeira. Mas pode ser que eles não tenham recursos ou capacidade de organização.
Por outro lado, embora os bancos possam ter um objetivo compartilhado, também estão competindo entre si. O que pode impedi-los de serem capazes de coordenar ou trabalhar efetivamente juntos. Então, acho que temos que ter cuidado. Outra questão é a estabilidade porque você realmente quer que seus bancos sejam confiáveis. E onde você coloca a inclusão financeira? Porque há um risco de que se você colocar inclusão acima da estabilidade, por exemplo, os bancos podem começar a fazer escolhas para impulsionar a inclusão com o risco de se tornarem menos estáveis. E isso pode ter benefícios, mas também pode ser desastroso para a economia se algo desestabilizar, se houver uma crise financeira e os bancos não estiverem preparados e não forem estáveis o suficiente. Pode fazer com que todos percam a confiança no setor bancário e isso seria um verdadeiro desastre.
5) E qual o papel do Estado para incentivar a inclusão e gerar um bem-estar comum na sua visão?
Bem, acho que os estados têm um papel muito mais forte na promoção da inclusão. Sabe, acho que os estados têm uma série de alavancas à disposição, tem uma espécie de papel regulador onde podem obrigar os bancos a fazer coisas.
O que tem sido realmente muito interessante observar no Brasil é que, apesar das grandes flutuações políticas na ideologia do governo, existe a continuidade de políticas públicas em alguns domínios. O Bolsa Família perpassou por governos diferentes e isso eu acho bastante louvável, porque a continuidade de boas políticas entre governos é a marca de uma democracia madura.
6) Como toda essa discussão é vista e tratada na Inglaterra e Europa, de modo geral?
Na Europa, em particular, parte dessa infraestrutura que estamos falando é mais ofertada pelo setor privado, então, muitos dos sistemas de pagamento são administrados por players do mercado e não há nenhum tipo de opção pública. Mas alguns desses mesmos sistemas de pagamento são regulamentados com objetivos de interesse público. Então, no Reino Unido, por exemplo, o sistema para troca de dinheiro na verdade é muito barato, praticamente gratuito. Não é tão fácil quanto o Pix, mas é certamente mais fácil do que no Canadá, meu país de origem. Então, há algum tipo de infraestrutura e o governo desempenha um papel menor.
A questão da identidade é muito mais sensível. Sabe, há relativamente poucos governos na Europa que têm uma identidade digital. O Reino Unido notoriamente não tem, não há carteira de identidade digital nacional no Reino Unido. E, você sabe, parte da coisa que torna isso factível é a existência de identidades analógicas que são bastante fortes nos países europeus.
Minha sensação é que, se os governos não criarem uma, o setor privado o fará. E eu acho que os governos estão se perguntando algumas questões realmente difíceis como: essa é uma tarefa que queremos atribuir ao setor privado? Pode ser que todas as identidades permaneçam analógicas e baseadas em papel e apenas as digitais sejam do setor privado? Mas se o mundo inteiro estiver se tornando efetivamente digital, isso vai ficar bem? E então eu acho que essas questões estão circulando e você vê alguns lugares como a Estônia, onde as pessoas têm identidades digitais e quando foi criada era um mercado emergente.
7) Como o G20 pode contribuir para todo esse debate, professor?
Os brasileiros fizeram infraestrutura pública digital, mas não estavam cientes. Você tem uma forma de troca de dados onde as informações sobre os cidadãos são capazes de se mover pelo governo com alguma facilidade para fazer análises e até mesmo fornecer serviços. Então, você realmente tem muitos dos blocos de construção aqui no Brasil, mas ninguém nunca usou o termo infraestrutura pública digital. Eles não pensaram dessa forma. Então, você era meio que muito habilidoso, mas inconsciente.
Mas eu acho que esse tema é uma questão mais profunda sobre qual é o papel do Estado e o que deve ser privado e o que deve ser público. E não há acordo no G20, assim como muitos dos países do G7 veem muitas dessas funções como atividades principalmente privadas que o mercado deve cuidar. E muitas pessoas em países emergentes estão preocupadas que não há valor suficiente no mercado para atrair participantes para resolver esse problema, então, você precisa ter uma resposta do setor público.
Se essa infraestrutura é essencial para operar sua sociedade, seu governo e sua economia no século 21, você está preparado para entregar essa infraestrutura a uma empresa privada, principalmente se essa empresa privada for de propriedade estrangeira?
Então, da mesma forma, que não construímos redes rodoviárias concorrentes e não construímos redes elétricas concorrentes porque esses são mercados do tipo o vencedor leva tudo, nós os regulamos como serviços públicos, talvez precisemos pensar sobre isso tudo nos mesmos termos.