MUDANÇAS CLIMÁTICAS

Biodiversidade linguística, crise climática e preservação de conhecimentos ancestrais

As línguas indígenas fazem parte do patrimônio nacional e estão sendo ameaçadas de extinção. Em 50 anos, cerca de 20 línguas podem desaparecer no Brasil, de acordo com especialistas. Diante da situação crítica de iminente perda da imensa riqueza de possibilidades de expressão de povos e sociedades, foi instituída pela Assembleia Geral das Nações Unidas a Década Internacional das Línguas Indígenas (DILI) para o decênio 2022-2032. Confira o artigo da professora da Universidade de Brasília Altaci Corrêa, exclusivo para o site G20 Brasil.

01/04/2024 07:00 - Modificado há um mês
Campeonato da língua kokama em Manaus. Crédito: Altaci Corrêa Rubim
Campeonato da língua kokama em Manaus. Crédito: Altaci Corrêa Rubim

Embora os povos indígenas representem 6% da população mundial, são as populações originárias as principais responsáveis pela diversidade linguística global, pois falam mais de quatro mil das 6,7 mil línguas do mundo. Contudo, estima-se que mais da metade de todas as línguas vão deixar de ser faladas até o final deste século.  Segundo o artigo 28 da Convenção 169 da OIT de 1989, “deverão ser adotadas disposições para se preservar as línguas indígenas dos povos interessados e promover o desenvolvimento e prática das mesmas”.

Diante da situação crítica de iminente perda da imensa riqueza de possibilidades de expressão de povos e sociedades, foi instituída pela Assembleia Geral das Nações Unidas a Década Internacional das Línguas Indígenas (DILI) para o decênio 2022-2032. A decisão foi tomada ao final do Ano Internacional das Línguas Indígenas em 2019, pela demanda dos povos indígenas da Bolívia, que compreenderam a importância de uma ação efetiva e contínua em prol do reconhecimento, da valorização e da manutenção das línguas indígenas no mundo.

A diversidade linguística é fundamental para a conservação da diversidade biológica no planeta. O Brasil, que está entre os 10 países com maior diversidade linguística, é também o país com a maior biodiversidade do mundo. São mais de 116 mil espécies animais e mais de 46 mil espécies de vegetais conhecidas no País, espalhadas pelos seis biomas terrestres e três grandes ecossistemas marinhos. Os ancestrais dos povos originários que vivem no atual território brasileiro vêm trabalhando de forma contínua e consistente em biomas do território há pelo menos 6 mil anos. 

Nas línguas indígenas estão presentes inventários das espécies, sistemas de classificação, narrativas etiológicas e principalmente, formas de manejo da diversidade, tecnologia fundamental para a preservação e biorestauração do meio ambiente. A perda linguística implica em perda de conhecimento decisivo ao enfrentamento da crise climática e ambiental contemporânea.

As línguas indígenas são o grande código e repositório do conhecimento sobre a Amazônia, o Pantanal, a Mata Atlântica, o Cerrado, a Caatinga e o Pampa. São línguas ancestrais justamente porque resultam da longa e profunda convivência humana em ambientes específicos, produzindo saberes altamente especializados. Nas línguas indígenas estão presentes inventários das espécies, sistemas de classificação, narrativas etiológicas e principalmente, formas de manejo da diversidade, tecnologia fundamental para a preservação e biorestauração do meio ambiente. A perda linguística implica em perda de conhecimento decisivo ao enfrentamento da crise climática e ambiental contemporânea.

De acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, estima-se que 250 línguas sejam faladas no país, sendo que cerca de 2/3 (aproximadamente 160) são de línguas ameríndias. Trata-se de uma diversidade tanto numérica quanto genética, pois são línguas pertencentes a aproximadamente duas dezenas de famílias linguísticas distintas. São línguas que estão em diferentes estágios de descrição e documentação, sendo que muitas se encontram com a transmissão intergeracional ameaçada. A pandemia de Covid-19, que vitimou sobretudo anciãos e lideranças indígenas, mostrou a vulnerabilidade da maior parte das línguas originárias que contam como falantes principais e lembradores justamente a população mais idosa.

Assim, a questão linguística deve ser incluída nas ações emergenciais tomadas para a proteção dos povos indígenas e dos territórios dos quais são os guardiões. É fundamental a realização de diagnósticos da situação de vitalidade linguística de cada comunidade indígena, da documentação e descrição das línguas, o apoio às iniciativas de fortalecimento e retomada linguística e a criação de Centros de Línguas Ancestrais promotores dos saberes indígenas nas línguas originárias, com ênfase nas etnociências e na inclusão digital. 

São todas políticas linguísticas desenvolvidas pelo Ministério dos Povos Indígenas através do Departamento de Línguas e Memórias. Contudo, são iniciativas que exigem financiamento e compromisso orçamentário de todos os beneficiários dos conhecimentos indígenas. Assim, recomenda-se fortemente a criação do Fundo Internacional para a Promoção das Línguas Indígenas para garantir a implementação das ações das políticas de valorização das línguas indígenas em países estratégicos para a questão da diversidade linguística e a biodiversidade do globo, como o Brasil.

Altaci Corrêa Rubim/Tataiya Kokama é pesquisadora do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas do Instituto de Letras da UnB. É co-presidente do Grupo de Trabalho Global da Década das Línguas Indígenas na Unesco e coordenadora-geral de Articulação de Políticas Educacionais Indígenas do Ministério dos Povos Indígenas.  
A língua kokama foi classificada como parte da família Tupi-Guarani, tronco Tupi, e a população Kokama está distribuída por comunidades no alto e médio rio Solimões no estado do Amazonas, no Brasil.

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